
Por Felipe Borba*
Socorro foi uma menina que cresceu vendo a mãe ser ofendida e agredida por seu pai, de forma a entender que amor e violência seriam duas faces da mesma moeda. Ainda pequena, de vez em quando questionava a mãe sobre a postura do pai, recebendo a explicação de que homens costumam ficar nervosos, mas que logo voltam ao normal, e que eles se amavam muito.
Ainda adolescente, Socorro encantou Amado com sua beleza. Se dizendo perdidamente apaixonado, ele logo a pediu em namoro, noivado e casamento. Já no início, em tom romântico, Amado deixou claro para Socorro que ela não precisaria completar os estudos, até porque não trabalharia, como as princesas dos contos de fadas.
A primeira gravidez veio rapidamente, e as demais quase consecutivas ou com poucos anos de intervalo. Amado, durante a primeira gestação, demonstrou tendência a traduzir seus desconfortos emocionais e insatisfações pessoais, profissionais, conjugais e familiares de forma violenta, direcionando-a contra a companheira. Começou com algumas críticas formuladas com rispidez, avançou para ofensas e xingamentos, até que vieram os primeiros empurrões, tapas, socos e chutes, redundando em lesões aparentes e em breves desmaios.
Amado, que bebia de forma social, tornou-se alcoólatra e experimentou cocaína, viciando-se imediatamente. A violência aumentou, devido à dependência, passando a ser ouvida pelos vizinhos e conhecida pelos familiares e amigos de Socorro. Quem poderia auxiliar, entretanto, considerava tudo aquilo como “briga de marido e mulher” e, doutrinado pelo ditado popular, nada fazia.
Socorro cogitou se separar, mas estava convencida de que seria a grande culpada por tudo o que acontecia, afinal de contas não era uma boa esposa, inclusive tendo deixado o arroz queimar certa vez, sem falar no dia em que estava amarrotada a camisa que Amado usaria para ir a uma das festas que frequentava com a intenção de encontrar mulheres sem seus defeitos e problemas.
Pelos filhos, Socorro decidiu suportar mais um pouco. Amado era um bom pai, um ótimo colega de trabalho e um importante membro da comunidade, assim como fora o pai dela. Se sua mãe aguentou, ela também deveria.
A cada ciclo de violência, Amado se dizia arrependido e materializava o sentimento, presenteando Socorro com mimos, como fazia nos primeiros meses de namoro. Tudo isso reacendia a esperança de que as cenas de fúria e de humilhação ficariam no passado. Todavia, eram meras e repetidas ilusões.
Tendo apanhado intensamente na frente dos filhos, Socorro entendeu que agora o limite tinha sido ultrapassado e manifestou o desejo de desfazer o casamento. Amado quebrou tudo dentro de casa, despedaçou o celular de Socorro e a acusou de querer sair com outros homens. Com as mãos em seu pescoço, mas sem esganar como antes, limitou-se a dizer, olhando no fundo dos olhos de Socorro: “se tu não for minha, não será de mais ninguém, e nunca mais vai ver teus filhos!”.
As ameaças de Amado mereciam credibilidade, pois faltava apenas o último passo para que ele alcançasse o temido desfecho na escalada violenta. Socorro também refletiu que, caso se separasse, não teria condições de se manter, muito menos de garantir o sustento dos filhos. Sua baixa escolaridade lhe garantiria um emprego de salário mínimo, insuficiente para a sua subsistência e a de três crianças e dois adolescentes.
Socorro permaneceu, desistindo de outra vida.
Cada vez mais fragilizada, diminuída e vulnerável, foi vendo sua autoestima se apagar, sem vislumbrar qualquer alternativa. Todos seguiam achando que era ela quem deveria tomar iniciativa para mudar seu contexto, alguns até julgando que ela só estava tendo o que merecia.
Amado, certo dia, chegou em casa mais perturbado pelas drogas e foi violento com os filhos. Socorro tentou defendê-los, gritando que não queria mais viver com ele, o que foi interpretado por Amado como um gesto inaceitável de afronta e audácia, acarretando um golpe físico definitivo contra Socorro.
Preso, processado e condenado, Amado cumpre pena. E pena é o que todos os que conheciam Socorro sentiram, principalmente dos filhos. Os filhos, motivo principal para que ela não buscasse ajuda, torcendo para uma alteração milagrosa no padrão de comportamento do marido, ficaram sem mãe nem pai.
Só neste ano, e somente no Rio Grande do Sul, mais de trinta mulheres perderam a vida em casos semelhantes a este, fictício, mas lamentavelmente baseado em fatos reais.
Socorra.
Ligue 180 e denuncie.
(*) Felipe Borba é delegado de polícia e mestre em Direito