
Por Alan Caldas – Editor
O bom de ver o tempo passando, que no fundo é o que se chama de “ficar vivo”, é poder ir tendo saudade do que se viveu no passado. Não há vida sem passado. O passado existe, sim. E do passado de Dois Irmãos, uma das coisas que tenho doce lembrança é o Departamento de Tiro da Sociedade Atiradores.
Há 122 anos a Atiradores marca profundamente a vida social da nossa Dois Irmãos. 122 anos!!! Não é brincadeira. Ela foi fundada no dia 1º de março de 1897, pela liderança do senhor Jacob Schmitt e seus amigos, e surgiu para incentivar a prática do tiro.
Desde que foi fundada, a Sociedade Atiradores tornou-se uma referência de quem era quem na cidade. Nas ruas, dizia-se que daquele grupo de atiradores participava só a elite de Dois Irmãos. Mas não era apenas o dinheiro que media esse ser ou não ser da elite. O fato é que, para pertencer ao grupo de tiro, era preciso pagar uma “joia” ao se associar no clube. E, além disso, era necessário pagar a mensalidade que manteria os estandes de tiro, as armas, a munição e tudo mais do clube. E não era barato. Nem todos tinham caixa para isso. E tinha mais uma coisa: o grupo era fechado. Não era qualquer pessoa chegar lá e “se associar”. Não senhor. Era preciso ser “convidado” por um dos conselheiros. Sem isso, não integraria o grupo de atiradores.
A história dos alemães gostarem de reunir-se em sociedades de tiro vem desde o nosso Império. Isso começa em meio aos alemães quando o Imperador brasileiro contratou 1.600 soldados alemães para lutar numa guerra na Argentina. Os 1.600 soldados chegaram aqui e precisavam praticar o tiro. Eles faziam estandes, para dar tiro organizadamente, como se faz no exército. E aqueles soldados ficaram convivendo em meio aos alemães que naquela época estavam recém começando a colonização germânica aqui no Rio Grande. Os soldados foram se misturando com a população. E durante esses treinos de tiro dos soldados alemães contratados pelo Imperador que surgiria, entre os “nossos” alemães, o gosto pelo tiro. Tudo tem sempre uma explicação. A do tiro é essa. É boa. E tem procedência histórica.
Tão logo foi fundado em 1897, o grupo de tiro da Sociedade Atiradores de Dois Irmãos passou a ganhar muitos troféus para o então vilarejo. Era um grupo coeso e alegre, que participava normalmente de quatro disputas anuais em cidades como Novo Hamburgo, Campo Bom, Igrejinha e Nova Petrópolis. A Atiradores ganhou, inclusive, O Campeonato Estadual de Tiro, tornando-se a cada ano mais respeitada.
Como alegria é sentimento que tem altos e baixos, a alegria dos Atiradores sofreu uma baixa durante o período da guerra. É a nossa velha conhecida história do Eixo, durante a Guerra Mundial. O Brasil ficou do lado contrário ao da Alemanha, e as práticas culturais alemãs foram sendo reprimidas. Entre essas repressões, estava a do tiro, é óbvio. Aos olhos do governo, se reunir para praticar tiro é muito mais perigoso do que dançar ou cantar em alemão. Sendo assim, no período da Guerra Mundial a prática do tiro foi suprimida em todas as sociedades de tiro cujos integrantes tinham sangue alemão.
Quando Hitler foi derrotado e as águas da tempestade da Guerra baixaram, o grupo de atiradores voltou. E o que sempre se via era que a prática do tiro era uma atividade tremendamente festiva.
Como era o tiro?
Era simples. Atirava-se com uma carabina de calibre 22, que pesava 7 quilos. Uma arma muito bonita e que pertencia à própria Sociedade Atiradores.
A arma ser da sociedade facilitava as coisas. Primeiro porque os atiradores não precisavam comprar a carabina, que era cara. Segundo, que não necessitavam de porte de arma, para transporte delas quando iam a concursos fora de Dois Irmãos.
Aqui na cidade se praticava o tiro normalmente uma vez por semana. Era às quintas-feiras. De noite. Os estandes ficavam nos fundos da Sociedade Atiradores, onde hoje está o bolão. Havia dois estandes, com alvos que ficavam a uma distância de 50 metros do atirador.
Aliás, um detalhe: no início, essa distância era maior, chegando a 150 metros. Imagina acertar um tiro a olho nu numa distância de 150 metros. Tinha de ter pontaria. Mas, aos poucos, essa distância entre o atirador e o alvo foi reduzindo, até ficar estabelecida a distância de 50 metros entre atirador e alvo.
Um detalhe incrível dessa sociedade de atiradores é que não era necessário saber atirar para integrar o grupo de atiradores. É que havia um diretor da sociedade que era instrutor, e quando a pessoa passava a integrar o clube, a sociedade lhe dava “como brinde” aulas de tiro com esse instrutor.
As pessoas literalmente se apaixonavam por esse grupo. Seu Rodolfo Lautert, por exemplo, chegou em Dois Irmãos em 1961 e logo se encantou pelo convívio comunitário proporcionado pela sociedade de tiro. Seu Glauto Bender igualmente, assim como o professor Waldomiro Rörig e tantos e tantos outros, muitos dos quais infelizmente Deus levou e agora só os vemos em nossas saudosas memórias.
O mundo mudou.
E para melhor, em alguns aspectos, e o grupo de tiro também sofreu a influência do tempo.
Por exemplo: durante quase um século essa atividade de tiro foi 100% masculina. Os atiradores de Dois Irmãos só começaram a ver saias em seu meio lá nos anos 80, quando seu Rodolfo Lautert levou a filha Anete para treinar tiro. A entrada da Anete no departamento incentivaria a participação de outras mulheres, ao longo do tempo. E atirava bem, a Anete. Ela sagrou-se Rainha do Tiro em 1984, atirando melhor que muitos dos homens que integravam aquele departamento. Foi ela que abriu espaço naquele universo masculino para o universo feminino.
Hoje a prática do tiro acabou, em Dois Irmãos. E ocorreu de forma lamentável. Mas ... deixa para lá. As amargas, não!
O negócio é que o tempo andou e foi deixando a prática do tiro com carabina apoiada só na nossa saudade. Saudade de um tempo em que tudo era diferente, e que por ser assim, diferente, acabou nos deixando saudosos daquele tempo lindo que se foi.