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As coisas passam, se transformam, algumas mantendo certo saudosismo, outras eliminando qualquer resquício de passado. Neste caso, resta à memória conservá-las em algum canto nem sempre visível, mas ainda ali, perene, como testemunha de um tempo, de uma forma de viver ou como simples lembrança esmaecida.
Pegue a música como exemplo, e veja como a forma de produzir e consumir experimentou uma revolução em um espaço de poucos anos. Da minha infância, lembro dos discos de vinil na casa dos meus pais – Ray Conniff, Roberto Carlos, Julio Iglesias, Manolo Otero... –, do aparelho de som Gradiente, das fitas cassetes ‘virgens’ que usávamos para gravar direto da rádio, lamentando a intromissão indevida do locutor no começo ou no fim da música (que raiva!). Na adolescência, havia os CDs, hoje um bicho quase pré-histórico para quem veio ao mundo depois dos anos 2000.
Tudo ficou tão fácil com os serviços de streaming (Spotify, Deezer, Apple, Tidal...), a música na palma da mão com acesso a álbuns e artistas de todas as épocas, em qualquer lugar, em qualquer caixinha de som portátil que, convenhamos, às vezes extrapola os limites das liberdades individuais e do bom senso. (Toda mudança, por melhor que seja, pode abrigar pequenos dissabores.)
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E o que dizer de livros, jornais e revistas, que se anunciam com os dias contados há não sei quanto tempo? Muitos ainda sobrevivem por teimosia de editores e do público leitor, outros se rendem ao digital sem contestação. É caminho sem volta? Não sei. Há quem careça do papel, do cheiro do livro, do toque, do sensorial. Os próprios discos de vinil ganharam fôlego nos últimos anos, inclusive com a chegada de novos e modernos aparelhos.
Tenho a impressão de que, mesmo com os dias aparentemente contados, sempre haverá sobrevida ao que é bom e necessário, ao que faz bem aos sentidos. O mundo muda, a gente muda, e a mudança pode ser só uma questão de ponto de vista.
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Por falar no prazer de um ter um bom livro (de papel) em mãos, que belíssimos o texto e a história de Torto arado, do baiano Itamar Vieira Junior...
Se puder, leia.
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INSTANTE NA ESTANTE
“Sofrer, esse sentimento difícil de exprimir e rejeitado por todos, mas que a unia de forma irremediável a todo seu povo. O sofrimento era o sangue oculto a correr nas veias de Água Negra. E como você sofreu trepando em palmeira de buriti e dendê, estropiando os pés nos espinhos. Sofreu com seus braços, robustos como os de um soldado, revirando a terra para semear e colher, mesmo sabendo que nem sempre colheria e que, quando colhesse, poderia ser levado pelos donos da fazenda. Arrastando seu andar manco, vigiando a casa e a plantação dos animais e dos infortúnios. Cuidando do pai que se preparava para partir. A mágoa que não permitia perdoar a irmã por inteiro, como nas brincadeiras de infância. Os pesadelos recorrentes quando se sentia acuada e perseguida, onde o punhal de Donana era a lâmina que mais uma vez dividia o corpo, o mundo, a terra e nela fazia correr um rio de sangue.”
Torto arado – Itamar Vieira Junior (1979)