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Não sabem da missa a metade, e mesmo com o trem em movimento insistem na janela. Confundem alhos com bugalhos unicamente para confundir, abusam do ilusionismo de dar nó em pingo d’água mesmo sabendo que quem está na chuva é porque quer. Velha piada: diga-me com quem andas e eu te direi se vou junto. (Acho que não!)
Como diz uma canção do Chico,
não me leve a mal, me leve à toa pela última vez,
me leve apenas para andar por aí...
Até parece que a beleza da leveza nos amedronta, que precisamos estar sempre tensionados, com dedos e pensamentos nebulosos em riste! Até parece que levantar a voz é a única maneira de marcar território, um território que está mais para campo minado... Ou seria mimado? (Boa pergunta.)
Como nossos filhos, quando pequenos, precisamos aprender – ou reaprender – a lidar com uma palavrinha desagradável mas necessária: NÃO. Bater pé e abrir o berreiro na seção de brinquedos não deveria mais ser opção. Também é feio sempre tentar impor aos coleguinhas apenas as nossas vontades, monopolizando o espaço coletivo do pátio. (Lembrem-se: recreio é direito de todos, inclusive daqueles que não são da minha turma.)
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Mais algum conselho?
Devagar com o andor, mas não porque o santo é de barro: ELE NÃO EXISTE! Quando derem por conta, talvez a hora da onça beber água tenha passado, talvez a onça não tenha mais sede, talvez nem tenha mais onça. E podem tirar o cavalo da chuva, pois a cobra também não vai fumar – até ela sabe que é prego no caixão.
Ah, e se não quiserem chorar, então que cuidem para não derramar o precioso leite. O preço baixou, mas ainda está caro. Não desperdice. (Ninguém quer a vaca no brejo, certo?)
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INSTANTE NA ESTANTE
Para decidir qual é a maior vantagem que se pode tirar, você deve perguntar o que o Inimigo pretende fazer com isso, e, então, fazer o oposto. Talvez você se surpreenda com o fato de que ele, em seus esforços para ter a posse permanente de uma alma, confie muito mais nos baixos que nos altos. Alguns dos seus filhos prediletos passaram por vales e depressões maiores e mais profundos do que qualquer pessoa. E a razão é a seguinte: para nós, os humanos não passam de comida. Nosso objetivo é a absorção da vontade deles na nossa, o aumento da nossa própria reserva de egoísmo à custa deles. Mas a obediência que o Inimigo demanda dos seres humanos é algo bem diferente. Deve-se encarar o fato de que toda aquela conversa sobre o seu amor pelos homens e a liberdade perfeita que vem de se entregar e dedicar-se a ele não é mera propaganda (como se poderia de bom grado acreditar), e sim uma verdade aterrorizante. Ele quer realmente encher o universo com um monte de pequenas réplicas repugnantes de si mesmo. Criaturas cujas vidas, numa escala em miniatura, serão qualitativamente como a sua, não porque eles as tenha absorvido, mas porque elas desejam se conformar de livre e espontânea vontade a ele. O que nós queremos é apenas gado que possa acabar nos servindo de comida; ele deseja servos que possam acabar se tornando seus filhos. Nós desejamos sugar, ele deseja retribuir.
Cartas de um diabo a seu aprendiz – C. S. Lewis (1898-1963)