Tenente da reserva dos bombeiros relembra atuação na tragédia da Boate Kiss

03/02/2023
Maicá (à direita) relembra o que presenciou em 2013

Maicá (à direita) relembra o que presenciou em 2013

No último dia 27 de janeiro, completaram 10 anos do incêndio da Boate Kiss, em Santa Maria. A tragédia deixou 242 mortos, 636 sobreviventes e marcas permanentes na história da cidade gaúcha.

Atual secretário de Desenvolvimento Econômico de Dois Irmãos, o Tenente da reserva do Corpo de Bombeiros Edson Maicá Severo era comandante do quartel dois-irmonense à época do fato e foi chamado para atuar na ocorrência. Dez anos depois, as cenas ainda estão vivas na memória do militar. “Minha profissão fez com que vivenciasse muitas coisas. Ajudei muitas pessoas em momentos de tragédia, perdi vidas em minhas mãos e sempre procurei ser um profissional durante todos esses momentos, mas não tem como você passar por tudo isso e não ser impactado. Quando retornei pra casa, reuni a família, choramos, nos abraçamos, rezamos e pedimos a Deus que desce força e conforto a todos os familiares das vítimas”, diz Maicá.

Em conversa com o JDI, ele relembrou a ocorrência. Confira!

 

“Até embarcar na aeronave, o número havia ultrapassado os 200 mortos”

Na época, Maicá era especialista em resgate terrestre e em altura. Também atuava como instrutor na Escola de Bombeiros, ajudando na formação de novos soldados e no aperfeiçoamento da tropa. “Fui acionado pelo Coronel Vitor Hugo Konarzewski, que na época comandava a região e era especialista em incêndio”, conta Maicá.

O militar foi acionado algumas horas após a tragédia. “Era domingo de manhã, bem cedo, quando recebi a primeira ligação: ‘Maicá, aconteceu um grande incêndio em Santa Maria, uma tragédia, tem umas 50 pessoas mortas e muitas no meio de escombros. O Coronel Vitor Hugo disse para você passar aqui em Novo Hamburgo e pegar as almofadas pneumáticas (equipamento de resgate capaz de erguer toneladas) e ir para o aeroporto. Ele vai te encontrar lá, uma aeronave vai levar vocês para Santa Maria’. Recebi essa primeira ligação do Tenente Parker, de Novo Hamburgo. As informações chegavam aos poucos, quando estou em deslocamento para Porto Alegre, recebo outra ligação informando que o número de mortos chegava a 100”, lembra, contando que, naquele momento, em Santa Maria, iniciava a retirada dos corpos, que eram colocados em caminhões e levados para o ginásio de esportes para identificação.

Horas depois, ainda a caminho de Santa Maria, os números revelavam uma tragédia cada vez maior. “Até embarcar na aeronave, o número havia ultrapassado os 200 mortos. Nesse momento, ainda no aeroporto, ajudamos o pessoal da saúde a carregar uma aeronave com respiradores, que já faltava em Santa Maria. Acho que essa foi uma ação muito importante e vital para salvar algumas pessoas que necessitavam de respiradores. Carregamos um avião de respiradores e fomos em outra aeronave. Na chegada, havia várias ambulâncias esperando os equipamentos para levar até os hospitais”, comenta o tenente da reserva, reforçando que a maior parte das vítimas morreu por asfixia mecânica e não por queimaduras.

 

“As pessoas estavam perplexas, não acreditando no que estava acontecendo e outras não entendendo como um incêndio poderia causar tantas vítimas”

Maicá e o Coronel Vitor Hugo chegaram a Santa Maria no final da manhã de domingo, quando o resgate das vítimas já havia sido concluído. “As pessoas estavam perplexas, não acreditando no que estava acontecendo e outras não entendendo como um incêndio poderia causar tantas vítimas”, lembra, comentando sobre o cenário da época. “Toda a área estava isolada. Adentramos no local, onde equipes do Instituto Geral de Perícias (IGP) já faziam levantamento. Eu e o Coronel Vítor Hugo começamos a fazer algumas fotos e analisar o caminho seguido pelas chamas, para entender o que realmente aconteceu. Conseguimos, ainda dentro do local, conversar com o produtor musical da banda; acreditamos que fomos os primeiros a conversar com ele, que nos relatou como tudo começou. Mesmo apavorado, ele confirmou a versão do uso de um Sputnik, jato de fogos no formato de árvore de Natal, que atingiu o teto onde havia um isolamento acústico com espuma, início da tragédia”, completa.

Conforme Maicá, o papel dele na ocorrência foi analisar como o fogo se comportou naquele ambiente e dar subsídios ao Inquérito Policial Militar (IPM), do qual ficou encarregado o Coronel Vítor Hugo. “Todo o material colhido naquele dia foi peça desse IPM”, ressalta Maicá.

 

“Foi uma cena de filme de guerra, jamais imaginei que presenciaria uma tragédia daquela proporção”

Após o levantamento das informações na boate, Maicá seguiu para o ginásio de esportes da cidade, para onde as vítimas eram levadas. Segundo ele, no local havia muitos curiosos e também familiares esperando para entrar no ginásio e fazer a identificação das vítimas. “Foi uma cena de filme de guerra, jamais imaginei que presenciaria uma tragédia daquela proporção. Os corpos eram perfilados um ao lado do outro e, assim que identificados, eram cobertos com lona preta. Nesse momento não ocorriam conversas paralelas entre as várias equipes que trabalhavam no local, o momento foi de muita dor, sofrimento de amigos e familiares”, conta Maicá, que ajudou a conduzir as pessoas para identificar seus filhos, irmãos e amigos. “Como havia mais de 200 vítimas no local (muitas ainda estavam nos hospitais), as pessoas tinham que passar por dezenas de corpos até encontrar seu familiar”, diz ele.

Após a identificação, as vítimas eram levadas para o ginásio ao lado, onde ocorreu o velório coletivo.

 

Ocorrência mais impactante ainda foi em Dois Irmãos

Maicá atuou no Corpo de Bombeiros por 30 anos. Durante todos estes anos, atendeu milhares de ocorrências e socorreu inúmeras vítimas, e lembra a que mais o marcou. “Por incrível que pareça, o que aconteceu na boate Kiss foi uma das maiores tragédias do mundo, em termos de vítimas de incêndio em danceteria; realmente foi terrível. Mas, para mim, a ocorrência de maior impacto em toda a minha vida profissional foi a enxurrada que aconteceu na Reserva Ecológica da Família Lima, em 2011. Naquela ocorrência eu era o comandante local e responsável por toda a operação de busca e resgate. A ocorrência durou uma semana, a responsabilidade de encontrar as vítimas passava diretamente por mim, a pressão foi muito grande”, lembra. 

 

Série da Netflix

No último dia 25 de janeiro, estreou na Netflix a série Todo Dia a Mesma Noite, que revive a noite de 27 de janeiro de 2013 e a luta dos familiares por justiça. Maicá conta que assistiu a produção. “Claro que é muito forte, pesado para assistir; há muito sofrimento para todos, imagina para os familiares das vítimas”, comenta.

Maicá conta que morou em Santa Maria de 1982 até final de 1988. “É uma cidade universitária, sempre existiram muitos lugares para festa nos finais de semana. Fui embora para Esteio, mas minha mãe, padrasto e irmãos continuaram morando lá, por isso seguidamente retornava; até hoje tenho parentes na cidade. Graças a Deus não encontrei nenhum familiar ou amigo entre as vítimas, havia essa possibilidade. Quando estava voando para lá pensei nisso, mas Deus me preservou dessa dor”.


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